Um raio-X e meses de análises científicas revelaram que, por baixo das camadas de tinta de “Pintura”, obra realizada pelo pintor espanhol Joan Miró entre 1925 e 1927, escondia-se um retrato da mãe do artista, informou o jornal britânico The Guardian. Sim, Miró pintou sobre a imagem da própria mãe.
À época, o espanhol já havia descoberto as vanguardas em Paris e buscava um estilo para chamar de seu — destruindo as esperanças de seus pais de que ele se contentaria com um emprego estável de escriturário.
Para Marko Daniel, diretor da Fundação Joan Miró, em Barcelona, a obra expressa o compromisso do pintor com a exploração “das convenções da pintura” e “do espaço pictórico”. No entanto, especula ele, talvez “Pintura” também represente a tentativa de Miró de se livrar das restrições da família burguesa — afinal, ele não escondia seu desejo de “assassinar a pintura”.
Um raio-X antigo já indicava que havia algo sob as camadas de tinta de “Pintura”. No ano passado, a equipe de restauradores da Fundação recorreu a um novo raio-X e a recursos tecnológicos como luz ultravioleta e infravermelha, luz rasante visível, luz transmitida e imagens hiperespectrais e descobriu o retrato de uma bem-vestida mulher de meia-idade, pintada num estilo que não poderia ser mais distante do de Miró.
Os restauradores perceberam que os brincos e o broche no pescoço da mulher correspondiam aos três pontos de tinta em relevo visíveis na superfície da tela. “Tínhamos uma imagem de alta qualidade do retrato, que parecia quase uma foto, mas não sabíamos quem era”, disse ao Guardian a chefe dos restauradores da Fundação Joan Miró, Elisabet Serrat.
Em busca da identidade daquela mulher, Serrat seguiu para a Fundação Mas Miró, museu criado na casa de campo onde a família passava os verões. Mas nenhum retrato lá se parecia com a mulher de “Pintura”. O diretor do museu, então, sugeriu que ela fosse atrás de pistas em Maiorca, onde Miró também viveu e trabalhou.
A dica foi certeira. No estúdio de Miró em Son Boter, Serrat encontrou um retrato de 1907 assinado por Cristòfol Montserrat Jorba que mostrava uma mulher idêntica à de “Pintura”. Era Dolors Ferrà i Oromí, a mãe de Miró. As únicas diferenças entre o retrato de Maiorca e o de “Pintura” são os brincos e o vestido da modelo.
Mas por que Miró pintaria sobre um retrato da própria mãe? Para os representantes da Fundação Joan Miró, a decisão do pintor foi um ato deliberado e uma antecipação da técnica de sobrepintura, que ele posteriormente aplicaria a suas próprias obras. No fim da vida, Miró também pintou sobre telas de artistas que considerava medíocres.
“Foi um ato de rebeldia”, disse Marko Daniel. “Miró já tinha 32 anos quando fez isso, então não foi uma rebeldia juvenil contra seus pais, mas contra o tipo de mundo que eles representavam: suas aspirações de classe média de parecer um pouco mais nobres do que realmente eram”, opinou o diretor da Fundação Joan Miró.
A descoberta do retrato escondido sob “Pintura” será apresentada na exposição “Sob as camadas de Miró: uma investigação científica”, na Fundação, e no documentário “O segredo de Miró”.