A prisão do prefeito de Istambul na semana passada, poucos dias antes de ser oficialmente nomeado como o candidato presidencial da principal sigla de oposição da Turquia, o Partido Republicano do Povo (CHP, na sigla original), marca um novo e preocupante capítulo na escalada antidemocrática do presidente Recep Tayyip Erdogan, há 22 anos no poder, afirmam especialistas. Eles concordam que a investida reflete uma oportunidade geopolítica única, mas os efeitos concretos da onda de manifestações que se seguiram à ordem do regime dividem opiniões.
— A Turquia é uma democracia problemática desde 1923, mas nunca deixou de ter uma sociedade civil absurdamente vibrante, mesmo quando Erdogan passou a utilizar elementos entendidos como democráticos para reforçar o poder em suas mãos — defende Monique Sochaczewski, professora de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). — Sempre tive muito cuidado em dizer que a Turquia era uma autocracia, mas com essa virada de chave não há outra definição.
Ekrem Imamoglu, de 53 anos, foi preso na manhã de 19 de março acusado de liderar uma organização criminosa, receber subornos, extorsão, gravação ilegal de dados pessoais e fraude em licitações — acusações que ele nega. Sua prisão é amplamente vista por adversários de Erdogan como uma medida política para remover um forte opositor da próxima disputa presidencial, prevista para 2028, embora o governo negue as acusações e insista que o Judiciário turco é independente.
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Andrew O’Donohue, acadêmico não residente do Programa de Democracia, Conflito e Governança do Carnegie Endowment for Peace, acredita que esses eventos representam “um perigoso ponto de inflexão entre a democracia e o autoritarismo total para o regime já repressivo” do país.
“Desde 2015, a Turquia tem sido um exemplo clássico do que os cientistas políticos chamam de autoritarismo competitivo: um sistema no qual o abuso do poder do Estado pelo governo inclina o campo da competição política a seu favor”, afirma em artigo. “Mas, até agora, Erdogan havia se abstido de cruzar o Rubicão e prender seu principal rival.”
Imamoglu tornou-se prefeito em 2019, em uma vitória inesperada. O governo anulou os resultados alegando irregularidades, mas, na nova eleição, ele venceu novamente, com uma margem ainda maior. No ano passado, foi reeleito, derrotando um candidato apoiado por Erdogan. Desde então, o governo instaurou 42 investigações administrativas e 51 ações judiciais contra ele, segundo seus assessores.
Antes de sua prisão na semana passada, a Universidade de Istambul anunciou a anulação do diploma de Imamoglu, alegando irregularidades em sua transferência de uma universidade no Chipre do Norte em 1990. Ele prometeu recorrer, mas, se a decisão for mantida, poderá ser impedido de concorrer à Presidência, já que a Constituição exige um diploma universitário para o cargo.
— Erdogan vê em Imamoglu talvez o último bastião de alguém que poderia competir de fato com ele — afirma Sochaczewski. — Imamoglu é um líder muito carismático e competente, que sabe usar as mídias sociais e vem de uma família religiosa do Mar Negro, como o Erdogan. É muito difícil esvaziá-lo, o que o torna um opositor perigoso.
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Desde que Imamoglu foi detido, o recém-eleito presidente do CHP, Ozgur Ozel, tem liderado protestos noturnos com milhares de pessoas em frente à prefeitura de Istambul e conduziu com sucesso as primárias do partido no fim de semana, “apesar das circunstâncias desafiadoras”, destaca Louis Fishman, professor associado do Brooklyn College.
“Os protestos em todo o país mostraram um muro de união entre um partido organizado, confiante e que não está disposto a recuar”, afirma em artigo no jornal israelense Haaretz. “Esse não é o mesmo CHP com o qual Erdogan e seu aparato estatal repressivo estão acostumados a lidar. Entretanto, a pergunta de um milhão de dólares é o que a oposição pode fazer para libertar Imamoglu. Por enquanto, parece ser muito pouco.”
Para O’Donohue, a principal questão que a Turquia enfrenta agora é se a estratégia de Erdogan para reprimir a oposição será bem-sucedida ou se a pressão social e internacional poderá forçar o regime a reverter seu curso. Dois fatores trabalham fortemente a favor do governo: “um ambiente internacional permissivo à repressão e o vasto domínio do partido no poder sobre as instituições estatais”, afirma. Mas os protestos, “que surpreenderam o regime do país com sua velocidade e escala”, representam uma variável importante para a oposição, já que “poderiam galvanizar as instituições estatais e a comunidade internacional para apoiar a democratização”.
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A prisão de opositores não é um fato novo na Turquia. Mas alguns analistas defendem que Erdogan teria ido longe demais, e que os protestos mobilizados na última semana podem ter custos políticos e econômicos para o seu governo, que sofre para lidar com uma inflação próxima de 40% e a crescente rejeição popular. Sochaczewski discorda.
— Minha avaliação é de que Erdogan calculou que, nesse momento, dobrar a aposta em relação ao Imamoglu, algo que ele já queria fazer há muito tempo, poderia gerar esse tipo de reação interna, mas que os custos não seriam tão altos em termos de ajuda ou cobrança internacional — afirma. — E, infelizmente, a verdade é que, apesar da importância e da beleza do engajamento da sociedade civil, não vejo como isso possa esvaziar o seu poder.
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A turbulência política ocorre em um momento em que a Turquia está bem posicionada internacionalmente. Rebeldes apoiados por Ancara assumiu o governo na Síria; os EUA de Donald Trump têm demonstrado pouco interesse em exigir padrões democráticos de seus aliados estrangeiros; e o temor de que Washington interrompa o apoio à Ucrânia na guerra contra a Rússia levou líderes europeus a estreitar os laços com a Turquia — membro estratégico da Otan, a aliança de defesa ocidental.
Os estudantes voltaram às ruas na quarta-feira, desafiando a proibição nacional e marcando uma semana desde o início das maiores manifestações da Turquia contra o governo desde 2013. Até terça-feira, a polícia havia prendido 1.418 pessoas, segundo o Ministério do Interior, incluindo sete jornalistas.
Novos protestos foram convocados para sábado.
— Nossos números não diminuirão com as detenções e prisões, nós cresceremos e cresceremos e cresceremos — prometeu Ozel.